terça-feira, 30 de junho de 2020

O SILÊNCIO DE GOLIAS

     

     Aquele que era conhecido por ter aversão a qualquer atraso, observava a chuva cantar em seu jardim. Seus olhos flutuavam sobre um quadro de pigmentos cinza: horizonte preguiçoso de mais um dia de trabalho. Essa dispersa criatura pontual estava, pela primeira vez, esboçando um sorriso sincero.
     - Não sei por que, mas vou me atrasar hoje – sussurrou enquanto preparava um pingado – pensando bem, não quero trabalhar – colocou a mão para esconder um sorriso de criança arteira.
     Quebrar regras nunca foi do feitio do rapaz: Nunca abriu a boca para contradizer seus superiores, afastava-se de qualquer um que colasse nos testes de escola...
     Muitos pensavam que ele era um robô, já que nunca expressou qualquer emoção. Mas eu me pergunto: Por quê? Por que agora?
     Depois de terminar o pingado, pegou seu smartphone (nunca vi coisa mais abandonada na vida).

     - Essa chuva... Veio de um jeito que me fez lembrar daquela criança do parque! Como será que ela está? Bom, deve ter minha idade hoje em dia.

     - Alô? – diz uma voz apagada.

     - Belí! É o Josh, aquele menino do parque!

     - Então moço, aqui é o Ricardo. Minha irmã falou de você algumas vezes, mas...

     - Como ela está?

     - Vou ser direto: tirou a vida faz pouco mais de seis meses.

     - Obrigado, desculpe o incômodo.
    
     - Imagina!

     Josh ficou com o celular no ouvido durante alguns minutos após a ligação. Toda aquela animação, a liberdade de antes, desapareceu junto à chuva. Era um cara do contra mesmo: o maior clima alegre de primavera e ela lá com a cara amarrada!
     Porém, entendo o garoto. Aliás, essa tal Belí foi a primeira pessoa que fez despertar a vontade de compartilhar seus sentimentos.
     Não teve jeito, o nosso menino pontual de antes acordou feito fogos de artifício! Já passou do momento de correr atrás das quase duas horas perdidas.
     Não perdeu tempo com essa coisa de “primeiro faço isso” “depois faço aquilo”. A criatura tem a incrível habilidade de fazer duas coisas ao mesmo. Em menos de cinco minutos já botava o amigo chapéu trancando a porta em movimentos cirúrgicos logo em seguida.
     O garoto não era trouxa de não usar o Uber numa hora dessas (agora o orgulho de alma velha não tem vez). Por sorte o motorista não demorou a chegar. Ao entrar no carro, Josh deu de cara com um senhor albino.

     - Josh, certo?

     - Sim. Siga o GPS, não quero me atrasar para o trabalho.

     - Claro! Se o senhor me permite dizer, vejo que outras coisas lhe perturbam além dessa pressa.

     Silêncio. Josh queria formular alguma resposta, todavia tinha cada vez mais certeza de que expor seus sentimentos era uma perda de tempo. Perdido em pensamentos, o garoto esqueceu de que havia um motorista ao lado dando início a um diálogo solitário, um monólogo de um exímio observador narrando velhas memórias de júbilo.
     Quando o motorista percebeu que seu passageiro iria iniciar uma prosa, se limitou a dirigir – seus 75 anos de vida ensinaram quando alguém precisa do silêncio para confrontar seus demônios.

     - A minha vida toda fui um observador, o cara atrás de janelas fartas assistindo as estações mudarem os corações das pessoas. Um jardim é algo muito além de gramas verdes, plantas, árvores ou flores: é a síntese da vida!

     - Isso tudo fez com que meu sorriso se tornasse uma flor diante de um árido deserto. Sabe por quê? É que sou fraco! Brincar sozinho durante anos esquecendo-se de todos ao seu redor te faz deficiente quando você precisa comer; estudar; sair com a família... Não importa! As pessoas estarão lá, vigiando sua vida com olhos de predadores famintos.

     - Quando criança costumava ir ao parque com um caderno e um giz de cera preto. Era assim que brincava (um jeito de acalmar o espírito sem ter a sensação de ser observado pelos predadores ao redor). Imaginava um mundo onde eu era o único humano da Terra.

     - De qualquer forma, senti-me diferente numa manhã cinza. Ouvi uma voz doce “Oi, meu nome é Belí! E o seu?”. Esse simples diálogo fez surgir rubores em minhas bochechas polares. Milagrosamente estava feliz conversando com essa menina. Os olhos dela não me perseguiam, pelo contrário! Eles pareciam entender meu medo, minha solidão, o desejo insaciável de viver em outra realidade.

     - Parecia que éramos amigos há anos, mas só convivemos apenas naquele dia. Acordei tão alegre, meus pais olharam com espanto quando corri em disparada para o parque esperando ver Belí mais uma vez, a única pessoa que considerei uma amiga de verdade. Fiquei lá esperando, chorando por não ouvir sua voz doce outra vez.
     - Hoje acordei cedo e fiquei observando a chuva cair no jardim de casa. Parecia que era um espectador assistindo meu “eu criança” brincando com minha amiga. Sabia que consegui o número dela? Ela me deu naquele dia para que a conecção entre nós se mantivesse viva com o começo de outras estações. Achei que poderia conversar...

     Josh não conseguiu arranjar forças para completar o resto. Estavam no meio do caminho quando começou uma forte tempestade. Mesmo assim, parecia que o menino só saiu de casa para fingir que o telefonema foi um terrível pesadelo.

     - O que você faria ao descobrir que a pessoa mais importante para o seu coração morreu? – murmurou o garoto.

     - Bom, passei por muita coisa nessa minha vida... A morte foi o que mais maltratou meu coração. Sou um colecionador de cacos!

     - Motorista, acho que isso não foi uma resposta!

     - Rapaz... Cada amigo que morre é um caco que se desprende de nós. Sou um velho teimoso. Até hoje guardo esses cacos para consertar o sorriso! – depois aquele vovô soltou uma gargalhada de arrepiar até onde não se tem cabelo.

     - Qual é o seu nome? Desculpe não perguntar...

     - Josef, ao seu dispor! Educação é bom, mas na pressa fica na bagagem! – dessa vez aquele velho bruto segurou o trovão que esconde nas entranhas.

     - Se me permite perguntar, quais são esses cacos?


     - Olha... Tem muito caco para te contar! De qualquer forma, o que gosto de lembrar é de quando minha filha morreu.

     - Cinquenta anos atrás minha querida esposa ficou grávida. Que alegria! Que euforia desconcertante aflorava dentro do meu âmago! Porém, estava com medo de nascer depois que a marinha resolvesse me chamar para alguma missão. Ser um homem do mar é uma montanha-russa de liberdade e maldição.

     - Nove meses depois, não havia recebido nenhuma nova ordem da marinha. Ficava rondando em círculos sonhando que o tempo andasse conforme minha vontade.

     - Não precisaria de mais nada se o tempo fosse uma fera domesticável! É algo normal essa humanidade mesquinha querer domesticar tudo, construir uma realidade onde um único homem tenha o poder de um deus, a posse de uma coroa intocável para a ralé.

     - Como tudo nessa vida, o parto chegou ao fim. Aquele rostinho frágil me transformou num novo homem. O Josef rígido; solitário; mesquinho; turrão; um opositor de tudo aquilo que não é o Josef escorreu junto ao rio de lágrimas acumuladas. Como um bichinho frágil e barulhento pôde me fazer chorar? Eu nunca chorei na vida. Levei muitas surras do meu pai, vi meu irmão ser levado pela correnteza do rio... Tantos motivos fortes para choramingar! Então isso era ser pai? Estava vendo uma parte boa vinda de mim. Minha vida seria linda! Mas, no dia seguinte recebi a maldita chamada. Foi a última vez que olhei aquele rostinho...

     - Dois anos depois, voltei todo animado! Minha filha não estava lá. Procurei por Janet, minha esposa, com a esperança de ver minha menininha. No fim descobri que numa tempestade como essa, ela e Janet morreram numa enchente. É isso!

     - Você não se sente mal por estar numa tempestade parecida com a do dia em que perdeu as duas?

     - Se fosse em outros tempos, ah! Larguei a marinha depois daquilo. Não tinha forças para desabafar com ninguém. Recorria à cachaça, mas todos fugiram de mim. Eu era daqueles bêbados violentos, sabe?
     - Comecei a questionar se eu era importante para esse mundão. O que um covarde que vive num mundo onde a pinga o transforma no rei mais forte, poderia oferecer de bom? Fui descobrir a resposta quando vagava nas ruas com minha companheira transparente.

     - Sentei na calçada. Um tempo depois me aparece um maluco estendendo a mão. Que mala! Ficou falando abobrinhas sobre reabilitação! Porém, a criatura me atingiu num ponto mais dolorido que os ovinhos sagrados! Vish! Ele perguntou se minha filha iria gostar de ter um pai cachaceiro vadiando nas ruas! Isso me fez encontrar meu gigante adormecido.

     - O seu o quê?

     - Josh, o que um solitário excêntrico e um cachaceiro sem rumo têm em comum?

     - Para que serve essa pergunta? Já perdi quase quatro horas desde que fiquei enrolando na minha casa! Assim vou ser demitido!

     - No fundo você sabe a resposta, jovem!

     Dessa vez o nosso solitário excêntrico foi perfurado das entranhas até a alma. Conseguiu encontrar um concorrente à Belí, que da mesma forma foi numa rotina aparentemente simples de uma forma simplesmente inesperada.
     O marinheiro sentiu desde o início que seu passageiro era um espelho do passado. Era como se quisesse compensar os erros da juventude ajudando um jovem com problemas parecidos.

     - O solitário excêntrico e o cachaceiro sem rumo – disse com uma voz trêmula seguida de uma brusca engolida em seco – os dois procuram vícios para passar pelos problemas, algo como o ditado “o que os olhos não veem o coração não sente”.
     - Hum... É uma boa resposta seu solitário excêntrico! – provocou o motorista.

     - É a única resposta, não é? Cachaceiro sem rumo?

     Os dois começaram a gargalhar tanto que a tempestade parou.

     - Josh! Todos guardam um gigante adormecido dentro de si. Sempre a tempo de quebrar o silêncio de Golias e lutar por mudanças. A morte da minha filha foi o começo de uma nova jornada! Tenho certeza que o falecimento de sua amiga não será diferente – disse Josef com um sorriso acolhedor.

     - Foi um prazer conhece-lo, Josef!

     - Espere! Antes de ir quero entregar-lhe essa caixa. Um ano atrás uma passageira de nome Belí pediu para entregar ao seu grande amigo Josh.

     O solitário pontual estava paralisado, mergulhado num silêncio repleto de insegurança.

     - Acho que o senhor tem um trabalho para ir, não é mesmo, rapaz?

     - Ah, tem razão! – exclamou dando dois tapas em cada bochecha para colocar os pés no chão.

     - Espero reencontrá-lo jovem amigo!

     - Igualmente marinheiro!

     Quem dera aquela criatura tivesse cabeça para trabalhar. Nunca faltou no serviço da livraria Paginária, então se prendeu na ideia de que seria perdoado.
     Não perdeu tempo em abrir a tal da caixa. Sentou no banco molhado da praça em que estava, respirou fundo, abriu e... Uma carta, uma única carta num grosso envelope. Eram cerca de três páginas numa letra miúda, porém extremamente caprichada.

     São Paulo, 2 de dezembro de 2019

         Caro Josh, como deve imaginar, muitas coisas aconteceram desde o nosso último e único encontro. Naquele dia encontrei um menino distraído com seus rabiscos. Senti algo nele que não via nas outras crianças, algo que me deixou fascinada: um gigante adormecido, uma vontade de criar coisas sem medo de ter suas criações artísticas julgadas! Até encontrei as celas desse gigante, uma prisão da qual também compartilho até hoje: conviver com os outros.
         Desde cedo mamãe me introduziu ao piano – todas as gerações de minha família tiveram pessoas relacionadas à música clássica. Minha mãe era presa a tradicionalismos que há tempos se tornaram piegas.
         Naquela manhã, papai sugeriu que eu brincasse lá fora com as outras crianças. Mesmo detestando a ideia, era melhor do que as intermináveis horas repetindo as mesmas escalas! Você foi a primeira pessoa que mostrava a mesma angústia no olhar: a solidão e insegurança de viver nessa sociedade baseada na convivência.
         Achei que minha vida iria mudar, entretanto, sabia que teria de ir no dia seguinte rumo á Milão, onde meu pai (cantor de ópera) e minha mãe (pianista) seriam mais valorizados.
         Todos esses anos, minha solidão foi alcançando novas proporções. Ficava presa numa rotina horrível de acordar cedo; fazer aulas particulares durante 3 horas; ter aulas de música no conservatório durante 4 horas por dia, tocar em concertos de piano uma vez a cada 15 dias e por último dormir 5 horas para voltar todo esse ciclo.
         O que me mantinha firme era o sonho de te reencontrar para construir conversas e ter alguém para desabafar. Você foi minha inspiração para interagir com os outros, queria mostrar que também tinha um gigante adormecido que luta para sua voz ser ouvida.
         Para alcançar uma plateia, por que não ir até ela? Por que não usar o piano para mostrar meus sentimentos ao mundo? Assim, meu Golias gritou, arrancando desde aplausos até oceanos de lágrimas. Nunca estive tão feliz!
         Doze anos depois, consegui comprar passagens para São Paulo com o intuito de visitar minha avó de 95 anos. Contudo, o que era para ser um voo tranquilo cheio de esperança, se transformou num inferno. Sofri um acidente aéreo (um raio danificou uma das asas). Tive a sorte de não morrer, mas até sido melhor virar carvão do que ter de amputar minha mão direita. Justo a mão que faz os solos, a harmonia... A fonte que me abastecia e que me mostrava o quanto eu era importante em algo, foi embora...
         Pegava-me pensando em como o Josh estaria, ou se ele despertou seu gigante. QUE BOBA EU SOU! Escrevo uma carta para desabafar contigo e acabo usando “Josh” ao invés de “você”...
         ENFIM! Queria muito ver você! Perguntar se é possível encontrar uma nova razão para viver... Será que uma prótese daria conta do recado? Do que adianta se não vou sentir as teclas frias para me dar segurança? Talvez você pudesse me ajudar.  Quem sabe eu até poderia ter alguma utilidade ajudando meu querido amigo...
         Não sei onde você está, nem sei se vou acordar amanhã para procurar. Ando meio preguiçosa, sabe?
                                      Beijos,
                                                        BELÍ

    
  - Não se preocupe minha amiga – disse olhando atentamente para o céu – você me libertou do silêncio. Quem diria que um simples tempo de chuva pudesse me mostrar outra forma de viver...   

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