domingo, 5 de julho de 2020

O POETA VIVE!

Palavras retratam passos soturnos
As cores nascem aos poucos

O poeta vive para mostrar
Da flor ao espinho
Como podemos ver diferente
Por trás do alarme a despertar
Por trás dos passos rasos
Por trás de uma pedra no caminho
Não é engraçado viver?
Um novo filme a cada segundo
Este é o sentimento do mundo

O poeta vive enquanto existir cores
O poeta vive enquanto nascer flores
Temos dias em que somos todos loucos

Por anos estive chorando
Chorando pela dançarina com olhos de lua
Por meses estive morrendo
Procurando o brilho do orvalho nesta rua
Nossas ruas são ondas do mar
Mudamos junto ao relógio num celular
Outrora um objeto metálico no bolso

O tempo pode parecer um roubo
Mas, o poeta vive
Não esqueça, ele vive

O poeta vive em todo mundo
O poeta vive na memória do tudo
Muito mais que uma pedra no caminho
A se repetir mil vezes desde que sou menino
Te agradeço
Vou ser gauche na vida!
Como todos, não é mesmo?

Todos nós saudamos o poeta
Ele vive, sim, ele vive


31/10/19

CAVALOS DE GUERRA

Saudações
Somos cavalos de guerra
Que descem a serra

O sangue não se espalha no jardim
Pois eles esperaram a chuva invisível
A torre é destruida por seu criador
Adimita, teu olhar se costurou sim!

Quando o horizonte susurra:
Onde está teu sorriso?
Dizemos apenas: a culpa é sua!
Ah, vocês sabem que estão perdidos

Saudações
Somos cavalos de guerra
Descemos a serra
O inimigo está ao nosso redor
Não podemos abrir a dor
Olhem apenas para nosso semblante
Um retrato sob uma suja estante
Um retrato de inexpressivo
Terrível 

O horizonte sussura:
O Vento vai tirar a sujeira
Agora é só recolher os destroços
E a janela estará inteira
Novos ares vem apenas com esforços
A escolha é sua!

07/01/20

FELIZ ÚLTIMO ANIVERSÁRIO



     Era um velho boneco abandonado por todos aqueles que um dia sorriram numa mesa de bar: jovens despreocupados com uma vida que parecia não ter fim. A inesgotável força de um pássaro no auge da vida, o que poderia dar errado? O velho que você conheceu no primeiro parágrafo... Olhe bem suas rugas, o pó na careca saliente demonstrando um sonhador que por pouco não sucumbiu à vasta estupidez de Ícaro.  
Esse senhor sempre teve um “complexo de boneco”, em outras palavras, ele não andava com as próprias pernas sem ouvir de seus amigos se era a coisa certa a fazer. Um pobre coitado...
    Contudo, devo admitir que era um ótimo observador: ele sabia exatamente quando um camarada tinha feito merda (ele sentia a bosta a quilômetros de distância). Isso foi a glória e a destruição de sua flamejante, porém confusa juventude.
     Sua visão apurada inibiu o “complexo de boneco”, pois não conseguia guardar os segredos como o do cara da rodinha de violão (que só tocava Legião e Raul como distração para roubar a grana de todos os bêbados que desmaiavam na décima música). Chegou num certo ponto que nosso x9 era tratado com sarcasmo, além do fato de que muitos se aproveitaram de que era uma versão masculina de “Maria vai com as outras”: fizeram tomar pinga e comer o próprio cocô, um verdadeiro fantoche.
    Agora ele aguardava sua partida para ser o prato de vermes e bactérias no subsolo de um jardim. – Quem sabe se eu tivesse visto que o programa do João Kléber estava derretendo meu cérebro... Terapia poderia ter sido uma boa – pensou por um momento antes de lembrar que não existem máquinas do tempo.

 - Não entendo você, velho! – disse para... Não preciso dar detalhes, né?

- De quem é essa voz? Por que mamãe não contou que eu era esquizofrênico?

- Eu não sou sua mãe, seu animal! Já ouviu falar de um narrador?!

- Hum... O que o Galvão Bueno faz na minha casa? VAI EMBORA!

- Que referência medíocre de narração!

- Foi mal aí, Sheldon Cooper!

- Vai a merda seu velho burro! O Sheldon não é nem narrador, só falta você me falar que eu sou o Neymar Jr.

- E não é?

- Cacete... Vou direto ao ponto: por que está sorrindo?

- Ah! Por que não disse logo? Estou esperando minha festa começar!

- Festa?

- É meu aniversário! Contratei até uma prostituta!

- Do que você tá falando? Sua pipa tá toda ferrado, vovô!

- Não é esse tipo de prostituta! Vou pagar com minha vida! Nunca fizeram uma festa de aniversário para mim... Então é a melhor forma de agradecer.

- Espera! Então ela é...!

- Isso aí!

    Depois dessa conversa, a tal “prostituta” chegou: estava num manto colorido com três chapeuzinhos de cone com um bolo de chocolate. Fiquei sem graça e coloquei o chapéu. Acendemos velas, cantamos uma versão macabra (porém esperada) de “Parabéns pra você” onde no final os dois gritaram de felicidade: Feliz último aniversário. Assim, cada um foi para seu canto mais acolhedor.

28/05/20







OLHOS DE LUA

Amanheceu ao contrário
Das janelas quebradas
Sorriso devorado por traças
A traçar o caminho funerário

Espelho quebrado
Estilhaços no peito
O mundo antes perfeito
Acena antes de afundar
Nos mares plúmbeos da dor

No buraco de meu coração
Três princesas da lua dançam
E assistem o violado segredo
Estão rindo do meu maldito romântico
Cheirando pó de Ícaro, sonhos de verão

Sou destroços de um reino distante
Onde idealizei séculos na prisão
De Vênus, sonhando em beijar
Me afogar nos lábios do luar
Oh! Olhos de Lua! Como ferem...
Sinto que sou um boi recebendo carimbada
Flamejante prova que sou teu escravo

Minha rosa de estonteante frescor
Mensagens voando além
Dividem tudo o que reside em meu ser
Você criou uma redoma
Para se protejer de meu veneno
A tempo, bem a tempo!

Leões chegaram para roubar
Minha rosa angelical
Agora eu sou o cara mal!
Sou um sintoma
De enjoo dessa turma de estrume
Onde está o lume?

Minha juba cai como uma estrada
Estrada nova para um recomeço
Achei que a morte era o começo
De um sorriso mórbido
Mas amanheceu ao contrário
Entre tropeços e alma quebrada
Com uma ajudinha extra
Construí o casulo da borboleta
Podem até arancar minha asa
Mas vou sobreviver
Mudar é a maior arma
Dessa vida

Data: 03/06/20

terça-feira, 30 de junho de 2020

CAÇADOR DE CORES

Hoje é um dia onde o sol não é o mesmo, onde a vida está ao contrário de seu próprio nome. Os céus denunciam o absurdo em pinceladas densas de cinza, cor ingrata a roubar a graça de um sorriso. 

   Agora sinto náuseas num amanhecer tão triste, é uma pena que não posso nem ao menos me fantasiar como um trabalhador padrão, as ruas caóticas que enchiam meu horizonte, agora só me enchem de lágrimas. Quem diria que teria saudades de tudo que achava sem graça, banal...

     Uma máscara, uma simples máscara tornou-se o abismo que separa o normal deste absurdo. Minha vida foi apenas um sonho? Será que sempre fui um figurante de The Walking Dead? O mundo não é mais o mesmo, uma guerra contra um inimigo invisível... Não sabemos mais o que veremos no próximo dia.

     De qualquer forma, não conseguia voltar a dormir vendo o clima deprimente que me abraçava com seus ventos gélidos.

   Minha mãe logo me abordou dizendo que iríamos visitar a Tina no hospital veterinário (a cachorrinha estava sofrendo muito no dia anterior, não tinha nem forças para ficar de pé). Chegando lá, pausei a música New Sansation do INXS que ouvia de forma descontraída no Spotfy para descer naquele hospital.

     Estava calmo por fora, ouvindo um cachorro latir para minha cara de esquisitão. Mas por dentro, estava apreensivo em ver aquilo que já imaginava há alguns dias. Não demorou muito para sermos guiados até a Tininha.

     Aquele lugar parecia um presídio canino, mesmo sabendo que todos eram muito bem tratados as grades pretas me deixavam incomodado. Ela estava deitada, respirando com dificuldade e com seus olhos cegos entre abertos. Não consigo descrever essa cena de uma forma que traduza os meus sentimentos de forma realista. Às vezes fico com raiva de ser tão insensível. Minha mãe e irmão fizeram um último carinho nela... Até pensei em ter feito, porém não queria chorar na frente dos dois.

     Parecia que os sentimentos de cada dia dessa quarentena estavam transformando minha vida num imenso borrão cinza, uma angústia sufocante de um antigo amante da Morte. Me senti um idiota preso na sensação normal de: “e se eu fizesse isso” “e se não fizesse aquilo”.

     Quando eu era um moleque de 14 anos, eu via a morte com olhos de um estúpido poeta da Segunda Geração do Romantismo: a única saída, a única coisa que vai me abraçar, a morte é algo fascinante, provocador, excitante e belo. No fundo era uma forma de justificar o desejo de vender minha alma para a mais profunda escuridão. Sonhava em me matar na frente do todos da turma para fazer uma cruz na testa de minha paixonite; depois um sonho mais maduro de ver com um grande sorriso todos que estão chorando na minha cova. Era uma ideia idealizada dessa coisa horrível.

     Mesmo que em pleno 2020 eu tenha acabado de vez com essa visão doentia, ainda era algo muito distante da minha realidade (o que poderia ser uma explicação para meu fascínio pela morte: quanto mais desconhecido, mais intrigante é). Agora, essa criatura idealizada veio ceifar a vida de um ser tão próximo quanto um irmão. 8 anos alegrando essa casa com seu jeito único.

     Após a notícia, minha mãe e irmão choraram litros de lágrimas. Entretanto, mesmo colocando óculos escuros para esconder o choro, ele veio como um fio lento de água deslizando sobre minha pele.

     “Fui o pior irmão que ela poderia ter”, essa foi a frase que mais sobrevoava meu coração, o maior de todos os arrependimentos dessa minha vida. Nesse momento estava bem claro que todos criaram cordões umbilicais com aquela criaturinha: 8 anos ceifados, todavia temos agora 8 anos cheios de lembranças e sorrisos.    

Resolvi raspar a cabeça para tentar aliviar o estress: queria renascer com tudo isso, aprender a aproveitar nossa vida junto a que amamos com ouvidos prontos a acolher, broncas precisas, para depois abrir um colorido sorriso. Ninguém está sozinho quando se tornam um caçador de cores.

 

O SILÊNCIO DE GOLIAS

     

     Aquele que era conhecido por ter aversão a qualquer atraso, observava a chuva cantar em seu jardim. Seus olhos flutuavam sobre um quadro de pigmentos cinza: horizonte preguiçoso de mais um dia de trabalho. Essa dispersa criatura pontual estava, pela primeira vez, esboçando um sorriso sincero.
     - Não sei por que, mas vou me atrasar hoje – sussurrou enquanto preparava um pingado – pensando bem, não quero trabalhar – colocou a mão para esconder um sorriso de criança arteira.
     Quebrar regras nunca foi do feitio do rapaz: Nunca abriu a boca para contradizer seus superiores, afastava-se de qualquer um que colasse nos testes de escola...
     Muitos pensavam que ele era um robô, já que nunca expressou qualquer emoção. Mas eu me pergunto: Por quê? Por que agora?
     Depois de terminar o pingado, pegou seu smartphone (nunca vi coisa mais abandonada na vida).

     - Essa chuva... Veio de um jeito que me fez lembrar daquela criança do parque! Como será que ela está? Bom, deve ter minha idade hoje em dia.

     - Alô? – diz uma voz apagada.

     - Belí! É o Josh, aquele menino do parque!

     - Então moço, aqui é o Ricardo. Minha irmã falou de você algumas vezes, mas...

     - Como ela está?

     - Vou ser direto: tirou a vida faz pouco mais de seis meses.

     - Obrigado, desculpe o incômodo.
    
     - Imagina!

     Josh ficou com o celular no ouvido durante alguns minutos após a ligação. Toda aquela animação, a liberdade de antes, desapareceu junto à chuva. Era um cara do contra mesmo: o maior clima alegre de primavera e ela lá com a cara amarrada!
     Porém, entendo o garoto. Aliás, essa tal Belí foi a primeira pessoa que fez despertar a vontade de compartilhar seus sentimentos.
     Não teve jeito, o nosso menino pontual de antes acordou feito fogos de artifício! Já passou do momento de correr atrás das quase duas horas perdidas.
     Não perdeu tempo com essa coisa de “primeiro faço isso” “depois faço aquilo”. A criatura tem a incrível habilidade de fazer duas coisas ao mesmo. Em menos de cinco minutos já botava o amigo chapéu trancando a porta em movimentos cirúrgicos logo em seguida.
     O garoto não era trouxa de não usar o Uber numa hora dessas (agora o orgulho de alma velha não tem vez). Por sorte o motorista não demorou a chegar. Ao entrar no carro, Josh deu de cara com um senhor albino.

     - Josh, certo?

     - Sim. Siga o GPS, não quero me atrasar para o trabalho.

     - Claro! Se o senhor me permite dizer, vejo que outras coisas lhe perturbam além dessa pressa.

     Silêncio. Josh queria formular alguma resposta, todavia tinha cada vez mais certeza de que expor seus sentimentos era uma perda de tempo. Perdido em pensamentos, o garoto esqueceu de que havia um motorista ao lado dando início a um diálogo solitário, um monólogo de um exímio observador narrando velhas memórias de júbilo.
     Quando o motorista percebeu que seu passageiro iria iniciar uma prosa, se limitou a dirigir – seus 75 anos de vida ensinaram quando alguém precisa do silêncio para confrontar seus demônios.

     - A minha vida toda fui um observador, o cara atrás de janelas fartas assistindo as estações mudarem os corações das pessoas. Um jardim é algo muito além de gramas verdes, plantas, árvores ou flores: é a síntese da vida!

     - Isso tudo fez com que meu sorriso se tornasse uma flor diante de um árido deserto. Sabe por quê? É que sou fraco! Brincar sozinho durante anos esquecendo-se de todos ao seu redor te faz deficiente quando você precisa comer; estudar; sair com a família... Não importa! As pessoas estarão lá, vigiando sua vida com olhos de predadores famintos.

     - Quando criança costumava ir ao parque com um caderno e um giz de cera preto. Era assim que brincava (um jeito de acalmar o espírito sem ter a sensação de ser observado pelos predadores ao redor). Imaginava um mundo onde eu era o único humano da Terra.

     - De qualquer forma, senti-me diferente numa manhã cinza. Ouvi uma voz doce “Oi, meu nome é Belí! E o seu?”. Esse simples diálogo fez surgir rubores em minhas bochechas polares. Milagrosamente estava feliz conversando com essa menina. Os olhos dela não me perseguiam, pelo contrário! Eles pareciam entender meu medo, minha solidão, o desejo insaciável de viver em outra realidade.

     - Parecia que éramos amigos há anos, mas só convivemos apenas naquele dia. Acordei tão alegre, meus pais olharam com espanto quando corri em disparada para o parque esperando ver Belí mais uma vez, a única pessoa que considerei uma amiga de verdade. Fiquei lá esperando, chorando por não ouvir sua voz doce outra vez.
     - Hoje acordei cedo e fiquei observando a chuva cair no jardim de casa. Parecia que era um espectador assistindo meu “eu criança” brincando com minha amiga. Sabia que consegui o número dela? Ela me deu naquele dia para que a conecção entre nós se mantivesse viva com o começo de outras estações. Achei que poderia conversar...

     Josh não conseguiu arranjar forças para completar o resto. Estavam no meio do caminho quando começou uma forte tempestade. Mesmo assim, parecia que o menino só saiu de casa para fingir que o telefonema foi um terrível pesadelo.

     - O que você faria ao descobrir que a pessoa mais importante para o seu coração morreu? – murmurou o garoto.

     - Bom, passei por muita coisa nessa minha vida... A morte foi o que mais maltratou meu coração. Sou um colecionador de cacos!

     - Motorista, acho que isso não foi uma resposta!

     - Rapaz... Cada amigo que morre é um caco que se desprende de nós. Sou um velho teimoso. Até hoje guardo esses cacos para consertar o sorriso! – depois aquele vovô soltou uma gargalhada de arrepiar até onde não se tem cabelo.

     - Qual é o seu nome? Desculpe não perguntar...

     - Josef, ao seu dispor! Educação é bom, mas na pressa fica na bagagem! – dessa vez aquele velho bruto segurou o trovão que esconde nas entranhas.

     - Se me permite perguntar, quais são esses cacos?


     - Olha... Tem muito caco para te contar! De qualquer forma, o que gosto de lembrar é de quando minha filha morreu.

     - Cinquenta anos atrás minha querida esposa ficou grávida. Que alegria! Que euforia desconcertante aflorava dentro do meu âmago! Porém, estava com medo de nascer depois que a marinha resolvesse me chamar para alguma missão. Ser um homem do mar é uma montanha-russa de liberdade e maldição.

     - Nove meses depois, não havia recebido nenhuma nova ordem da marinha. Ficava rondando em círculos sonhando que o tempo andasse conforme minha vontade.

     - Não precisaria de mais nada se o tempo fosse uma fera domesticável! É algo normal essa humanidade mesquinha querer domesticar tudo, construir uma realidade onde um único homem tenha o poder de um deus, a posse de uma coroa intocável para a ralé.

     - Como tudo nessa vida, o parto chegou ao fim. Aquele rostinho frágil me transformou num novo homem. O Josef rígido; solitário; mesquinho; turrão; um opositor de tudo aquilo que não é o Josef escorreu junto ao rio de lágrimas acumuladas. Como um bichinho frágil e barulhento pôde me fazer chorar? Eu nunca chorei na vida. Levei muitas surras do meu pai, vi meu irmão ser levado pela correnteza do rio... Tantos motivos fortes para choramingar! Então isso era ser pai? Estava vendo uma parte boa vinda de mim. Minha vida seria linda! Mas, no dia seguinte recebi a maldita chamada. Foi a última vez que olhei aquele rostinho...

     - Dois anos depois, voltei todo animado! Minha filha não estava lá. Procurei por Janet, minha esposa, com a esperança de ver minha menininha. No fim descobri que numa tempestade como essa, ela e Janet morreram numa enchente. É isso!

     - Você não se sente mal por estar numa tempestade parecida com a do dia em que perdeu as duas?

     - Se fosse em outros tempos, ah! Larguei a marinha depois daquilo. Não tinha forças para desabafar com ninguém. Recorria à cachaça, mas todos fugiram de mim. Eu era daqueles bêbados violentos, sabe?
     - Comecei a questionar se eu era importante para esse mundão. O que um covarde que vive num mundo onde a pinga o transforma no rei mais forte, poderia oferecer de bom? Fui descobrir a resposta quando vagava nas ruas com minha companheira transparente.

     - Sentei na calçada. Um tempo depois me aparece um maluco estendendo a mão. Que mala! Ficou falando abobrinhas sobre reabilitação! Porém, a criatura me atingiu num ponto mais dolorido que os ovinhos sagrados! Vish! Ele perguntou se minha filha iria gostar de ter um pai cachaceiro vadiando nas ruas! Isso me fez encontrar meu gigante adormecido.

     - O seu o quê?

     - Josh, o que um solitário excêntrico e um cachaceiro sem rumo têm em comum?

     - Para que serve essa pergunta? Já perdi quase quatro horas desde que fiquei enrolando na minha casa! Assim vou ser demitido!

     - No fundo você sabe a resposta, jovem!

     Dessa vez o nosso solitário excêntrico foi perfurado das entranhas até a alma. Conseguiu encontrar um concorrente à Belí, que da mesma forma foi numa rotina aparentemente simples de uma forma simplesmente inesperada.
     O marinheiro sentiu desde o início que seu passageiro era um espelho do passado. Era como se quisesse compensar os erros da juventude ajudando um jovem com problemas parecidos.

     - O solitário excêntrico e o cachaceiro sem rumo – disse com uma voz trêmula seguida de uma brusca engolida em seco – os dois procuram vícios para passar pelos problemas, algo como o ditado “o que os olhos não veem o coração não sente”.
     - Hum... É uma boa resposta seu solitário excêntrico! – provocou o motorista.

     - É a única resposta, não é? Cachaceiro sem rumo?

     Os dois começaram a gargalhar tanto que a tempestade parou.

     - Josh! Todos guardam um gigante adormecido dentro de si. Sempre a tempo de quebrar o silêncio de Golias e lutar por mudanças. A morte da minha filha foi o começo de uma nova jornada! Tenho certeza que o falecimento de sua amiga não será diferente – disse Josef com um sorriso acolhedor.

     - Foi um prazer conhece-lo, Josef!

     - Espere! Antes de ir quero entregar-lhe essa caixa. Um ano atrás uma passageira de nome Belí pediu para entregar ao seu grande amigo Josh.

     O solitário pontual estava paralisado, mergulhado num silêncio repleto de insegurança.

     - Acho que o senhor tem um trabalho para ir, não é mesmo, rapaz?

     - Ah, tem razão! – exclamou dando dois tapas em cada bochecha para colocar os pés no chão.

     - Espero reencontrá-lo jovem amigo!

     - Igualmente marinheiro!

     Quem dera aquela criatura tivesse cabeça para trabalhar. Nunca faltou no serviço da livraria Paginária, então se prendeu na ideia de que seria perdoado.
     Não perdeu tempo em abrir a tal da caixa. Sentou no banco molhado da praça em que estava, respirou fundo, abriu e... Uma carta, uma única carta num grosso envelope. Eram cerca de três páginas numa letra miúda, porém extremamente caprichada.

     São Paulo, 2 de dezembro de 2019

         Caro Josh, como deve imaginar, muitas coisas aconteceram desde o nosso último e único encontro. Naquele dia encontrei um menino distraído com seus rabiscos. Senti algo nele que não via nas outras crianças, algo que me deixou fascinada: um gigante adormecido, uma vontade de criar coisas sem medo de ter suas criações artísticas julgadas! Até encontrei as celas desse gigante, uma prisão da qual também compartilho até hoje: conviver com os outros.
         Desde cedo mamãe me introduziu ao piano – todas as gerações de minha família tiveram pessoas relacionadas à música clássica. Minha mãe era presa a tradicionalismos que há tempos se tornaram piegas.
         Naquela manhã, papai sugeriu que eu brincasse lá fora com as outras crianças. Mesmo detestando a ideia, era melhor do que as intermináveis horas repetindo as mesmas escalas! Você foi a primeira pessoa que mostrava a mesma angústia no olhar: a solidão e insegurança de viver nessa sociedade baseada na convivência.
         Achei que minha vida iria mudar, entretanto, sabia que teria de ir no dia seguinte rumo á Milão, onde meu pai (cantor de ópera) e minha mãe (pianista) seriam mais valorizados.
         Todos esses anos, minha solidão foi alcançando novas proporções. Ficava presa numa rotina horrível de acordar cedo; fazer aulas particulares durante 3 horas; ter aulas de música no conservatório durante 4 horas por dia, tocar em concertos de piano uma vez a cada 15 dias e por último dormir 5 horas para voltar todo esse ciclo.
         O que me mantinha firme era o sonho de te reencontrar para construir conversas e ter alguém para desabafar. Você foi minha inspiração para interagir com os outros, queria mostrar que também tinha um gigante adormecido que luta para sua voz ser ouvida.
         Para alcançar uma plateia, por que não ir até ela? Por que não usar o piano para mostrar meus sentimentos ao mundo? Assim, meu Golias gritou, arrancando desde aplausos até oceanos de lágrimas. Nunca estive tão feliz!
         Doze anos depois, consegui comprar passagens para São Paulo com o intuito de visitar minha avó de 95 anos. Contudo, o que era para ser um voo tranquilo cheio de esperança, se transformou num inferno. Sofri um acidente aéreo (um raio danificou uma das asas). Tive a sorte de não morrer, mas até sido melhor virar carvão do que ter de amputar minha mão direita. Justo a mão que faz os solos, a harmonia... A fonte que me abastecia e que me mostrava o quanto eu era importante em algo, foi embora...
         Pegava-me pensando em como o Josh estaria, ou se ele despertou seu gigante. QUE BOBA EU SOU! Escrevo uma carta para desabafar contigo e acabo usando “Josh” ao invés de “você”...
         ENFIM! Queria muito ver você! Perguntar se é possível encontrar uma nova razão para viver... Será que uma prótese daria conta do recado? Do que adianta se não vou sentir as teclas frias para me dar segurança? Talvez você pudesse me ajudar.  Quem sabe eu até poderia ter alguma utilidade ajudando meu querido amigo...
         Não sei onde você está, nem sei se vou acordar amanhã para procurar. Ando meio preguiçosa, sabe?
                                      Beijos,
                                                        BELÍ

    
  - Não se preocupe minha amiga – disse olhando atentamente para o céu – você me libertou do silêncio. Quem diria que um simples tempo de chuva pudesse me mostrar outra forma de viver...   

O POETA VIVE!

Palavras retratam passos soturnos As cores nascem aos poucos O poeta vive para mostrar Da flor ao espinho Como podemos ver diferente P...